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Eu não queria ver este filme. Quando me disseram que eu ia ter de ver A Lenda de Tarzan e escrever uma crítica, as minhas palavras foram, e passo a citar: “não vejo onde um remake do Tarzan possa funcionar”.

Tarzan é a criança do poster do Imperialismo Britânico. Tarzan foi criado por Edgar Rice Burroughs em 1912, representando uma cultura britânica muito cheia de si mesma, orgulhosa das suas colónias africanas e indianas, com uma atitude muito “Rule, Britannia!” e com o espírito do “White Man’s Burden” do Rudyard Kipling, em que os brancos civilizados têm a responsabilidade de salvar os povos mais primitivos da sua condição inferior e arrastá-los para a luz do mundo moderno, mesmo que isso implique oprimi-los e escravizá-los. Tarzan é a representação de um ideal de condição humana, um Übermensch vindo directamente de Nietzsche, o pico da forma física e integridade moral, Rei da Selva, “Lord of the Apes” (e naquela altura “apes” incluía pessoas não-brancas).

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Como? Como é que esta personagem, com este tipo de narrativa, podia funcionar num filme moderno? Para um público americano? Sobretudo num clima em que por um lado os desvios ao material original são pecados capitais, e por outro lado ainda no outro dia outro polícia matou outro afro-americano desarmado.

Para começar, A Lenda de Tarzan é um filme muito óbvio.

O enredo é a coisa mais simples e directa que podes imaginar, basicamente de “o mau contra o bom”. Não há floreados narrativos na exposição, que basicamente redunda em duas cenas de 2 minutos em que duas personagens explicam, palavra por palavra, todo o conflito do filme: “É preciso obter diamantes, e o Mauzão que os controla quer matar o Herói, portanto é preciso manipular o Herói para o entregar ao Mauzão” e “Há um homem mau, que quer fazer coisas más a pessoas boas, e portanto o Herói tem de ir lá salvar toda a gente”. Não fica nada subentendido, é muito rápido e eficiente, tudo explicado preto no branco. Acontece tão depressa que eu nem posso fazer a queixa habitual de que a exposição directa é aborrecida. A meio do filme há mais uma cena de exposição do enredo, igualmente directa, só para garantir que a audiência não se perde pelo caminho.

As personagens são todas igualmente óbvias, muito unidimensionais e arquetípicas, com todas as suas características muito vincadas não fosse a audiência confundir-se. O Herói é mesmo muito heróico, o Vilão é mesmo muito mauzão, o Side-Kick é mesmo muito side-kicky, a Rapariga é mesmo muito rapariga.

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Tarzan é executado da forma mais clássica possível. É um homem muito atraente, muito branco, no pico da sua condição física (pensar-se-ia que crescer na selva, desnutrido e sem acesso a medicina moderna levasse a raquitismo, mas não), moralmente inatacável, incrivelmente corajoso. É apresentado como se fosse um super-herói, e de facto durante o filme funciona como uma mistura de Super-Homem e Capitão América. Isto não é sem sentido, dado que o Tarzan é na realidade o precursor cultural de muitos dos tropes que viriam a resultar nos Super-Heróis, 20 anos depois. A interpretação de Alexander Skarsgård é muito competente e muito menos exagerada do que eu estava a pensar que fosse.

O vilão é o arquétipo do branco colonizador sem escrúpulos ou humanidade que vai escravizar toda a gente. Só lhe falta cofiar o bigode e atar a Jane à linha do comboio. Christoph Waltz basicamente interpreta uma caricatura de si mesmo, com todos os maneirismos germânicos que lhe conhecemos, e isso é uma coisa boa! Como eu disse, é uma personagem óbvia, sem grande complexidade, e por vezes é preciso alguém que saiba construir uma interpretação óbvia sem que pareça forçada, e Christoph Waltz faz isso com uma perna às costas.

Samuel L. Jackson também se interpreta a si mesmo, o afro-americano zangado, barulhento, rude, que gosta de disparar armas. Estes aspectos são tão vincados que não é um exagero dizer que ele representa toda a América, tanto que a sua personagem se chama George Washington (mesmo!). É a personagem com quem é suposto o público Americano identificar-se, e funciona como o side-kick a quem são explicadas coisas que o público deve saber.

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A Jane é a namorada do Tarzan e, apesar de protestar contra esse estereótipo, a verdade é que não consegue escapar dele. Dito isso, a interpretação da Margot Robbie é particularmente bem conseguida.

O filme é visualmente impressionante, com paisagens africanas deslumbrantes de savanas, rios, florestas, cataratas, montanhas, e os efeitos especiais apesar de não serem os melhores que eu já vi são suficientemente competentes para eu não ter sido distraído por falhas. Há uma quantidade certa de saltos de liana em liana que são divertidos, nem demais nem de menos. Está muito bem filmado, com várias decisões de cinematografia e composição muito interessantes, e depois do espanto inicial de perceber que o realizador David Yates é também o realizador da maior parte dos filmes do Harry Potter, percebo que isso na realidade faz todo o sentido.

Portanto, como estás a perceber, o filme é muito simples, muito directo, e muito óbvio.

Excepto quando não é.

O que é interessante são as coisas que vão acontecendo em plano de fundo, que o filme nunca aborda directamente ou sequer reconhece verbalmente que estão a ocorrer.

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O filme mostra-nos uma África incrivelmente cativante. A determinada altura, Tarzan e  Jane, chegam à sua aldeia natal, onde vive a tribo africana que os acolheu quando eram jovens. A caracterização dos extras é excelente, as roupas e os ornamentos são muito interessantes, únicos de personagem para personagem, os momentos em que os membros da tribo se juntam e cantam são riquíssimos. Não há nada que sugira que se trata de uma cultura primitiva ou sequer pitoresca. É uma representação de uma cultura africana pré-colonial muito apelativa e vibrante, mostrada com honestidade e sinceridade. Simplesmente não estamos habituados a ver África representada desta maneira, tão rica e saudável, sem nenhum paternalismo ou condescendência.

A personagem do Samuel L. Jackson demonstra isso mesmo, e espelha o espanto e admiração de um afro-americano, descendente de escravos raptados de África, que pela primeira vez toma contacto com a sua cultura ancestral. Ele nunca diz nada como “Oh meu Deus, esta cultura é tão estranha e ao mesmo tempo reconhecível, sinto uma familiaridade estranha para com este povo”, isso simplesmente fica implícito nas suas interacções com os membros da tribo. Não te esqueças que a sua personagem é o substituto da audiência e uma representação da América, e a sua reacção é um eco do que a audiência sente nesse momento.

Simplesmente não estamos habituados a ver África representada desta maneira, tão rica e saudável, sem nenhum paternalismo ou condescendência.

Sabendo isto, o facto de que o conflito deste filme assenta sobre a escravatura torna-se subitamente mais interessante.

Porque quando foi a última vez que viste um filme que mostrasse pessoas de raça negra com correntes à volta dos pés e do pescoço? Nos últimos anos, tudo o que envolva racismo e opressão de minorias é uma bomba-relógio em que ninguém quer tocar, e a única pessoa que se safa com isso é Quentin Tarantino, e mesmo ele é criticado. Este filme tem a coragem de mostrar negros escravizados e abordar a escravatura sistemática e industrializada que ocorreu em África durante anos. O objectivo da personagem de Samuel L. Jackson, que representa a América, é lutar contra essa escravatura e impedir que ela continue. Nesse contexto até o nome da personagem, George Washington, ganha uma nova dimensão no sentido em que esse obviamente é o nome de escravo que lhe foi dado pelos seus antigos donos.

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E antes que o público americano começasse a sentir-se demasiado orgulhoso de si mesmo por estar a ajudar um povo oprimido, a personagem de Samuel L. Jackson tem um momento em que conta como lutar na Guerra Civil Americana (que resultou na libertação dos escravos afro-americanos) foi difícil, mas algo em que se orgulhava, mas que depois disso tinha trabalhado como caçador de índios. Diz que a escravatura era terrível, mas que o que eles tinham feito aos nativos americanos tinha sido igualmente mau, ou pior, e que é o tipo de coisa que o mantém acordado à noite. Portanto, temos uma personagem que é uma representação da América, num filme sobre escravatura, a assumir que massacrou e oprimiu o povo nativo-americano. Esse diálogo não tem o tom de um pedido de desculpa, é mesmo só uma constatação de factos. “Nós também fizemos isto, nós não somos melhores”, e a única pessoa que conseguiria transmitir essa mensagem sem parecer falsamente humilde era uma personagem negra interpretada pelo Samuel L. Jackson.

Portanto o que está a acontecer neste filme é uma luta por África contra os colonizadores brancos. É o povo africano, os animais africanos, todo o espírito de África, a unir-se e a tentar repelir os invasores Europeus. No fim do filme há um momento que eu achei particularmente brilhante. Mesmo antes do último grande ataque à colónia dos Brancos, em que estamos a ouvir ao longe o trovejar da debandada de búfalos que vai destruir tudo, Christoph Waltz vira-se na direcção da câmara e diz “It doesn’t matter now. It’s too late“. Explicitamente ele diz isto porque ainda acredita que vai conseguir fugir com os diamantes, mas o que está implícito é que esse grande ataque que tem por objectivo repelir a invasão europeia não vai ter sucesso.

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Todos nós sabemos como é que a história acaba. Sabemos que a Europa invadiu África, sabemos que a explorou e escravizou, roubando-a da sua beleza e cultura natural, ao ponto em que quando vemos uma representação dessa cultura pré-colonial no início do filme, sentimos isso como algo invulgar e desconhecido.

Todos estes aspectos dizem-me que o filme está agudamente consciente dos aspectos imperialistas e colonialistas do seu material de origem, e que não só os assume, como os subverte numa execução que é igualmente poderosa como subtil, disfarçada por debaixo de um enredo simples e personagens arquetípicas. Isto faz d’A Lenda de Tarzan um filme que vale muito a pena ser visto, nem que seja porque estes são temas que não vemos explorados habitualmente, e é refrescante ver um filme de super-heróis que não seja de super-heróis.

o filme está agudamente consciente dos aspectos imperialistas e colonialistas do seu material de origem, e que não só os assume, como os subverte numa execução que é igualmente poderosa como subtil, disfarçada por debaixo de um enredo simples e personagens arquetípicas.

O filme não é perfeito, no entanto.

Há demasiados flashbacks a mostrar a história de origem do Tarzan. Já toda a gente está fartíssima de saber que ele foi abandonado na selva e criado por macacos. Não é preciso mostrar isso outra vez, e o filme está cheio de todas as cenas de que já estamos à espera, com o Tarzan em criança a ser abandonado, e inicialmente rejeitado, e depois acolhido pela mãe adoptiva, e a fazer amigos e isso tudo. Era muito mais interessante que nada disso fosse mostrado, e simplesmente tivessem confiança na cultura da audiência.

A Jane, no fim, continua a ser uma donzela que tem de ser salva, e num filme que subverte tantos aspectos clássicos da história, é pena que este não seja um deles. Não se pode ter tudo.

Em última análise, tudo isto que eu disse é muito giro e engraçado, mas acaba por ser o Tarzan branco que salva o dia. Seria difícil contornar isso (mas não impossível) e o Tarzan é mostrado como sendo tão perfeito que é quase um alienígena, à semelhança do Super-Homem. Nesse sentido o facto de o Tarzan ser branco não é mais nem menos relevante do que o facto de que o Super-Homem ser branco.

Portanto a minha reacção final a este filme resume-se a uma citação dentro do próprio filme.

– What was that?
– Tarzan! It sounds different than i thought. Better!

Bem-Bom

O que significa isto?

Achaste piada ao subtexto do filme?

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