Crítica | Mel

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Por Sofia Silva escritor/a em SOMOSGEEKS.PT
Licenciada em Estudos Portugueses e Ingleses. Obcecada com A Guerra dos Tronos, O Senhor dos Anéis e Harry Potter. Bibliófila...

Ian McEwan é um dos meus autores favoritos, um escritor inglês capaz de fazer parecer plausíveis os enredos mais macabros e de ressaltar o aspecto sinistro e inquietante de cenas aparentemente mundanas. Basta dizer que se estreou como escritor de romances com o livro O Jardim de Cimento (1978), que envolve, sem revelar demasiado a trama, cadáveres escondidos por crianças e um toque de incesto. Nos seus romances subsequentes, McEwan mudou um pouco o seu foco, sendo agora conhecido por escolher para seus protagonistas personagens da “primeira classe” – juízes, engenheiras, damas da alta sociedade.

O seu romance mais famoso é Expiação (2001), adaptado ao cinema em 2007 num filme com a Keira Knightley e o James McAvoy, vencedor de um Oscar e nomeado para seis outros. Todos os romances de McEwan caem dentro de um padrão semelhante – personagens com as quais é fácil relacionarmo-nos, com vidas normais, com algum sucesso; um súbito surgimento de acontecimentos bizarros, de comportamentos humanos aparentemente inexplicáveis; as reacções a e racionalizações sobre estes eventos. O novo romance de McEwan, In a Nutshell, será publicado em breve.

Ian-McEwan

Publicado em Agosto de 2012, Mel distingue-se das outras obras recentes de Ian McEwan pela temática. Este livro é uma história de espiões passada nos anos ’70 numa Inglaterra que lidava com uma dura crise económica e com repetidas greves de mineiros. Serena Frome, a protagonista, é filha de um severo bispo anglicano. Devido a ter demonstrado talento para a matemática, vai para a Universidade de Cambridge, mas a sua prestação académica não é muito boa. Um professor (casado) com o qual namora na Universidade arranja-lhe um trabalho no MI5, a organização de espionagem inglesa paralela ao mais conhecido MI6. É um trabalho pacato: Serena dactilografa e arquiva documentos todo o dia. À noite, faz a única coisa para a qual tem talento: ler. Lê pilhas e pilhas de romances, sem se importar com a sua qualidade ou fama. Tudo muda quando é escolhida para participar como espiã na Operação Mel, através da qual se irão financiar artistas para produzirem obras contra o comunismo soviético. Serena conhece Thomas Haley, um autor jovem e fascinante.

O livro acaba  por se transformar, em certos pontos, numa reflexão sobre a literatura.

Se bem que não posso dizer que esteja ao mesmo nível de outras obras do mesmo autor, como O Fardo do Amor (1997) ou A Balada de Adam Henry (2014) (ambos livros profundamente perturbadores), gostei deste livro. Um elemento que adorei foi a inclusão dos contos escritos por Thomas Haley, pequenas “histórias dentro da história” que são de grande qualidade e que nos fazem recordar pelas suas temáticas os outros romances de Ian McEwan. Em certos momentos, chegava a ficar com pena quando acabavam os contos e recomeçava a história! Também gostei muito da descrição do ambiente político inglês da época, que foi informativa mas não exaustiva, e dos ambientes pitorescos de Londres e de Sussex. Os intuitos da organização de espionagem, que pareciam de início demasiadamente simples e, sinceramente, algo estúpidos, acabaram por se revelar no final, com maior complexidade do que o esperado.

O livro acaba também por se transformar, em certos pontos, numa reflexão sobre a literatura, sobre aquilo que importa e que deve importar quando escolhemos o que ler ou o que escrever. Achei também infinitamente interessante um problema matemático paradoxal apresentado no livro, o problema de Monty Hall, que lida com probabilidades e capacidade lógica. Finalmente, a qualidade da escrita em si, algo que aprendemos a esperar deste autor, torna possível uma leitura fluída.

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Isto dito, a personagem principal deixou muito a desejar. Serena é uma protagonista frustrante, muito crédula e inocente, que se deixa usar e manipular. É obcecada por homens – primeiro um, depois outro, e outro, e outro. Ah, e outro – são cinco relacionamentos em 300 páginas. O que começa por ser interessante acaba por ser ligeiramente cómico, quando Serena se perde em devaneios sobre as orelhas deste espécime masculino, ou o sorriso daquele. Compreendo que tudo isto é necessário ao desenvolvimento da personagem, que acaba por mudar muito, e se apercebe da futilidade de certos comportamentos que teve, mas torna a leitura aborrecida. O facto de todo o livro ser narrado por esta personagem insossa arrefeceu o meu entusiasmo por um livro de resto agradável.

Em resumo, este livro é um bom romance de espionagem, e é uma interessante reflexão sobre a literatura. Recomendo, porém, que, se nunca tiveste lido um livro de Ian McEwan, comeces por outro (sugiro Expiação). Este deixa-se ler, mas não é dos melhores.

Está-Quase-Lá

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